Havia um tal chamado Chico Sé; este só de ver dava medo. Era um homem dos terríveis; sempre armado, sempre desconfiado. Sabia-se de dois defuntos que ele dera cabo. Um foi numa banalidade das tamanhas: matou o cristão com o único motivo de se ver livre de uma dívida de alguns poucos reais, que nem vale a pena aqui dizer o quanto. O outro foi por um motivo mais nobre um pouco – o tal havia ultrajado sua irmã e ele se viu no direito de fazer justiça.
Nunca se vira uma criança perto dele, nem uma pessoa sorrindo; dava para se sentir a densidade daquela figura maldita a quilômetros. Até mesmo os cães sentiam o cheiro de gente ruim e se afastavam quando Chico Sé se aproximava. Era casado e batia na mulher, que coitada, foi-lhe vendida pela mãe pobre quando tinha por volta de seus quinze anos. Ela era um mero objeto na mão daquele truculento sem modos. Havia ódio no olhar dela quando se tocava no nome do marido.
Eu via aquele homem do fundo do bar de meu pai nos idos anos de minha vida; um bar de beira de estrada, onde com freqüência Chico Sé passava com aquele seu opala velho cheirando gasolina. No bar bebericava umas cachaças e contava histórias de dar medo nos demais, principalmente em mim e meu irmão, que ainda éramos crianças. Vi, por estas e outras, que ele não valia muito o angu que comia...
Vai que um dia Chico estava no bar, do lado de fora sorvendo um pouco daquele vento de agosto que a muitos leva. Eu o observava do brejinho ao lado, onde eu e meu irmão brincávamos sempre. Ele picava fumo de rolo para fazer um cigarro; fazia seu trabalho parcimoniosamente, como se ele não fosse o cara truculento que era normalmente. Depois começou a ajeitar a palha de milho para fazer o mais belo cigarro – deve ter pensado – pois com a mesma parcimônia com que picava o fumo, também ajeitava a palha.
Mas aí soprou um vento mais forte, que levou sua palha, que então já devia estar pronta para o melhor cigarro. A palha voou para o asfalto e Chico Sé, com a mesma calma com que fazia todo o serviço para enrolar o cigarro, foi apanhar a palhinha, antes que outro vento a levasse para mais longe. Abaixou-se para pegar a danada, mas como havia de algum modo previsto, veio um vento e a levou. Chico Sé já começava a se encrespar com as forças da natureza, mas não teve muito tempo: veio um caminhão que o atropelou e quebrou metade dos ossos de seu corpo.
Quando vi os bombeiros apanhando o que restara de Chico Sé espalhado pelo chão, pensei que nunca mais veríamos aquele machão vivo. Ouviu-se tempos depois que ele havia quebrado as duas pernas, os dois braços, por volta de sete costelas, sem contar os quase mil pontos que foram usados para ajuntar todos os seus pedaços. Mas aparte isso, tinha sobrevivido, diziam.
Eu nunca acreditei que um homem pudesse sair vivo de um acidente como tal até o dia em que vi Chico Sé adentrando estrondoso o bar de meu pai, não mais do que seis meses depois do ocorrido. Agora ele estava um pouco torto, com algumas cicatrizes no rosto, o que o deixara mais terrível. Era o mesmo homem que estava ali na nossa frente, com os mesmo gestos e truculências.
Depois disso ele apareceu no bar por diversas vezes; veio com muitas outras histórias de terror. Ouviu-se depois até dizer de um que havia morrido e que era o Chico Sé o encomendador. Depois ele ficou por um tempo sumido; apareceu esparsamente no último ano; e um belo dia de agosto de ventos soprantes e luz densa, chegou a notícia que não tardava: Chico Sé morreu.
Eu pensava até então que Chico Sé não era homem de morrer – devia ter parte com o sujo. Mas morreu, e na hora pensei, como todos devem ter pensado, que no mínimo a morte devia ter sido morte matada – muita gente não gostava daquele sujeito. Porém, foi logo adiantando o Zé Lé, que dava a notícia, que ninguém tinha matado ele não: Chico Sé morreu engasgado com café, disse. Ninguém acreditou naquela notícia inverossímil; como podia um homem feito o Chico morrer de forma tão besta? Pensavam todos. Deve ser um castigo do destino ou de Deus. O certo é que Chico Sé depois de morto virou motivo de chacota: um homem que parara um caminhão no peito ia morrer engasgado com café.
De tudo ficou uma lição: cuidado com seu cigarro, mas principalmente com seu café.
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