sábado, 31 de janeiro de 2009

Casos provincianos

A Quincas Berro D'água

Há algum tempo atrás, J. havia jurado de pés juntos e em nome de Deus, que não haveria de mover sequer uma palha novamente para ter de viver. Vou viver do que me derem, disse certa vez aos amigos que muito lhe prezavam devido ao fato dele ser um homem de palavra. E foi que J. não mais capinou sequer um metro quadrado de terreno para poder ganhar alguns trocados para comer; nem mesmo carregou sacolas de feira das respeitadas senhoras como o fazia antigamente ou engraxou os sapatos dos dignos senhores de São Deus. No começo, quando ele resolveu aderir a este novo estilo de vida, as coisas vinham dando muito certo; sempre tinha um cristão compadecido com sua figura deprimente, que preferia ficar à míngua do que ter de se matar por uma miséria. Mas com o passar do tempo as pessoas passaram não ver aquela atitude com os bons olhos que viam antes. Aquele artista em potência no início, tornou-se um vagabundo em ato. Restara a J., pois, apenas os velhos amigos que não podiam fazer muito por ele.

Então, como ele havia jurado (e não cumprir uma jura é pecado, principalmente se a jura for em nome de Deus) decidiu que, como a vida sem trabalho não vinha dando certo, seu tempo na terra havia acabado, de modo que na tarde do dia seguinte seria o seu enterro. Falou aos amigos que esta era a última vez que os incomodaria: pediu que arranjassem o velório; caixão, flores, carpideira e cachaça para que as pessoas se emocionassem mais com a sua partida. Os amigos arranjaram tudo que ele havia pedido, não sem certa relutância e tentativas de convencê-lo de que o trabalho não era de todo mal e que a vida era boa. Mas estava tudo acertado: no dia seguinte por volta das três da tarde sairia o cortejo fúnebre até o cemitério Descanso Eterno onde eles depositariam os restos ainda vivos de J.

Quando chegaram o caixão e as flores, J. foi logo dando um jeito de se aconchegar da melhor forma em seu paletó de madeira e ainda ficou dando opinião ao funcionário da funerária de como as flores deveriam ser colocadas para que o defunto ficasse mais elegante. Pediu a um dos amigos que arranjassem um cravo vermelho para dependurar na lapela. Pediu também que chamassem Manuela, sua amada, para chorar algumas gotas de lágrimas sinceras por ele. E o velório estava armado. A carpideira que chegara sem estardalhaço fazia suas rezas e chorava umas lagrimazinhas mentirosas, o que fez J. a dispensar logo de cara. Vê se um defunto tem de agüentar lágrimas forjadas, disse. E mandou que se servisse a cachaça; e foi aí que o velório começou a ficar divertido. Os amigos comovidos contavam os grandes feitos de J., que sabia ser tudo inventado, mas aceitava tais estórias, pois tornava sua vida mais heróica do que realmente era.

Por vezes um dos amigos servia uma doze especial de cachaça e dava ao defunto-vivo que a bebia com gosto. Olha gente, disse um deles, olha como defunto bebe que não faz nem careta. E todos gargalharam e mandaram servir mais uma dose para J. que já começava a ficar bêbado. O velório varou noite adentro. Certa hora, quando o silêncio já incomodava até mesmo o mais morto dos defuntos, J. sugeriu para os amigo que tocassem um samba com caixas de fósforo e a tampa do caixão. Mas tem que ser samba triste, disse, pois senão isso acaba deixando de ser um velório. Assim as horas da madrugada passaram sem que ninguém percebesse.

Pela manhã apareceu Manuela, que tentou convencer J. a não fazer o que se propunha, mas ele estava bêbado o bastante para se comover das palavras dela. Depois de derramar suas lágrimas diante do seu finado, foi tomada por seu espírito prático e começou a arrumar a bagunça, devido à animação do velório. Ajeitou as flores que atrapalhavam um pouco de ver o rosto de J. Depois, por volta da hora do almoço, foi preparar uma galinha caipira para aqueles que ainda bebiam tirar o gosto da cachaça. E todos elogiaram a galinha, e J. aproveitou para tirar um cochilo depois de comer um pouco. Dormiu até a hora em que o acordaram perguntando a que horas sairia o enterro, pois já era três da tarde. E ele disse que já podiam ir saindo, que já era hora.

Ouve um certo estardalhaço para ver quem ia carregar o caixão, o que foi resolvido quando J. disse quem ele gostaria que o levasse a sua morada eterna. Pediu que alguém levasse a tampa do caixão e o deixassem aberto, pois o calor era demais, mesmo para um defunto.

A notícia do enterro de J. se espalhou por todo povoado de São Deus; em todas as conversas só se falava disso: que ele resolvera partir dessa para uma melhor, pois não queria trabalhar para ter que comer. Muitos pensaram em como convencê-lo a não fazer isso, pois a vida é sagrada, mais do que as juras, pensavam. Mas J. continuava impassível, secando o suor com um lenço que lhe arranjaram e pensando o quanto é fatigante o velório para os defuntos, muito mais do que para aqueles que ficam.

A certa altura do cortejo apareceu o Cel. Macário; ele era o homem mais rico de São Deus e de todas as localidades que se avistava do alto do pico. O Cel. que em meio a sua opulência ouvira a história de J. foi ao seu encontro para lhe fazer uma proposta para continuar vivo. Falou com J. que se ele desistisse da empreitada lhe arranjaria todo mês um saco de arroz plantado em suas terras, até o fim natural de sua vida; e isso lavrado em cartório. J. pediu que parassem um pouco, para que ele analisasse a proposta.

Passados alguns segundos perguntou:

– Arroz com casca ou sem casca?

– Com casca, disse Cel. Macário.

Sem hesitação J. disse:

– Toca o enterro, pessoal!

Um comentário:

Antônio Ribeiro disse...

"Cada qual que ajeite seu enterro..."
Massa dmais!