terça-feira, 29 de abril de 2008

Nada mais que um homem*

Pouco importa ao nosso caríssimo leitor saber precisamente onde se passam os fatos que tentarei narrar. Que fique bem claro: não há imparcialidade alguma nas páginas que se seguem. Ou haveria?

O que acontece é que infelizmente o narrador que vos transcreve este relato -, digo transcrever, pois é algo que o chegou por outrem – não conheceu de fato os fatos; limitou-se a interpretar as interpretações.

Dadas estas breves justificativas podemos partir ao nosso objetivo: narrar a presença e a ausência de dois corações que foram um, e voltaram a se fragmentar.

Nada mais nos importa que um único dia que alterou uma rotina flácida que compunha nosso personagem. Aliás, já se trafega pela boca da plebe que basta um dia para que uma vida se altere. Completaríamos que ás vezes esperamos um dia apenas que justifique nossa efêmera passagem pela navegante e inconstante vida. Mas...

Encontrava-se só, em uma rodoviária imunda em algum recôndito canto de algum lugar atingido pelo trópico. Haja vista o lirismo de nossa narrativa não é possível esconder do leitor esta informação. Sua territorialidade é quase explicita. Mas encerram-se por aqui as descrições. Nosso leitor será melhor que o narrador e cobrirá as lacunas de nosso conto.

Mas de qualquer forma ele estava só. E neste estado esteve até que algo muito forte lhe chamou atenção. Não conseguiu, por mais que quisesse não se envolver na situação, algo havia ali que era impossível de negar, não pode deter o seu inquisidor olhar e, sejamos coerentes, bastante ranzinza e mal humorado.

Algo o prendera ali, não apenas fisicamente, pois uma energia que houvera tempos não sentia havia lhe acometido, mas, principalmente toda sua atenção. Bem localizado entre a última porta que dá entrada ao saguão e a primeira fila de guichês estava aquilo que lhe causara tanto encanto, embora ainda desconhecesse o que era. Aliás, aquele ponto parecia-se, para não dizermos categoricamente que era exatamente aquele homem em forma de concreto, o que nosso leitor poderia achar demasiado pretensioso. Mas de fato aquele ponto tinha algo de si. Observou que os guichês que lhe transpunham a vista estavam, divisionalmente exatos: cheios, em uma de suas metades, com sorrisos esperançosos, movidos pela possibilidade de reencontros e, por outro lado, completamente vazios. Nela não chegavam ninguém. Os poucos que ali chegavam não acreditavam na reparação de uma saudade causada pela partida. Não podemos deixar de sinalizar que no nosso homem em questão um sorriso esperançoso andava bastante desaparecido.

Mas, apesar de não saber ao certo de que se tratava, não conseguia recolher-se a sua habitual discrição. Seu olhar o atraía fatalmente àquele ponto, meio guiado por algo que vinha de dentro, mas que ele não sentia desde o dia em que decidira nunca mais dar vazão à voz que lhe ecoava dentro de seu peito. Mas não trataremos dos motivos que o levaram a tal reclusão, e de certa forma não queremos tocar em feridas tão expurgantes. O que nos é suficiente para o presente é a certeza de que sua promessa fora quebrada; felizmente, dizem alguns, já outros não preferiam tocar no assunto.

Não podia ceder àquela energia que o atraía. Todavia, de maneira amplamente contrária a regularidade de suas ações cedeu ao lampejo de seu instinto. Foi-se nosso homem. Arrastado por aquela força que ainda tentava inutilmente vencer. Quando deu por si já se viu imerso naquela sensação pungente que tanto lhe atordoava.

Há tempos não sentira aquilo. Sua vil racionalidade, impotente e amorfa cedia lugar a uma erupção de fulgor. Olhou inutilmente o relógio, que não consegui decifrar. Tudo o que lhe era tão próprio naquele local – dado as inúmeras e incontáveis vezes que ali estivera da mesma forma -, lhe pareceu estranho. Sentiu novamente aquela voz, que insistia abruptamente em alajor-se nele e fazer de si seu senhor. Não resistiu, cedeu. Apesar do medo que quase o congelava partiu àquele desconhecido prestes a desabrochar. Respirou fundo e sepultou o cigarro ainda pela metade que lhe pendia entre os dedos junto a caixa de areia a sua direita que lhe servia de cinzeiro, embora fosse proibido fumar naquele público recinto.

Hesitou ainda, mas por pouco tempo que somente para efeito deste conto vale a pena descrever. Após o último lapso de consciência; última fagulha das sinapses que lhe foram possíveis... Partiu. Nosso leitor pode achar demasiado desproporcional o termo partir, habitualmente utilizado por escritores mais competentes, para grandes distâncias territoriais. Mas pedimos que ainda não julgues por isto, pois logo agora justificar-nos-emos.

Aqueles trinta e poucos passos pareceram-lhe o caminho que traçava todos os dias, ainda em sua tenra infância, quando marchava algumas léguas para voltar da escola. Aquele curto espaço físico e temporal desaterrou-lhe a vívida memória daquilo que sentira em tempos tão imemoriais. Uma distância muito longa e sofrida, mas que era agraciada com a chegada ao conforto e a segurança dos braços de sua matriarca. Esta lembrança esvaecida forneceu-lhe a última gota de ânimo que era possível, e com a qual desdobrou-se para chegar a seu objetivo. Logo que chegou àquele ponto do qual antes não obtivera contato visual compreendeu de forma não tão agradável o que o levara até ali.

Não havia nada. Somente o vazio daqueles espaços tão frios e, talvez por isto foi acometido de forma tão forte. Ali nada avia ou existia naquele momento. A única coisa que viu ali, naquele calabouço mal iluminado, sujo e sombrio foi o reflexo do que se tornara. As ao nosso caro leitor caberá a paciência de aguardar para saber o que o levara até este calamitoso estado de solidão, à qual era arrastado e que já havia se acostumado.

Sentiu-se muito pior que o costumeiro. Sabia ele muito bem como fora intragável desumanizar-se; perder os últimos galhos verdes de uma árvore decrépita que chamamos esperança.

Apesar de ter compreendido esta última fraqueza como uma inútil migalha de esperança contemplou-se em sua mágoa que se tornara naquele momento ainda mais profunda, principalmente com relação a ele mesmo, por ter se permitido aquele rompante movido a emoção.

Sua vida tornou-se ainda mais insuportável a partir daquele momento, e não é fácil encarar dores novas, mesmo quando já as possui de outra natureza. Percebeu que queria o amor, principalmente aquele de uma utopia que vivera muitos anos atrás. Não se perdoou por isto, mas não podia simplesmente deixar de viver. Queria sim pode não sofrer, mas por não poder optou por sentir o cheiro do lixo, brindar a derrota e ser mais um perdedor em meio a esta legião de insignificantes que não querem um lugar ao sol, mas apenas o afago de um gargalo e algumas bitucas de cigarro para infectar-lhe o pulmão, e distorcer o seu cotidiano tão maldito. Ma era apenas mais um homem de compromissos que não tinha coragem para mudar.

Atravessou novamente aqueles trinta e poucos passos que lhe trouxeram um gosto amargo de sangue à boca.

Sentou-se na mesma cadeira – que sempre usara por ser a mais desgastada, o que lhe gerava imensa simpatia -. Acendeu seu cigarro e checou seu bilhete de embarque. Seu ônibus partirá daí a uma hora e meia, que serão, assim como muitas horas mais, um martírio que terá de enfrentar.

Fumou seu cigarro ignorando novamente o aviso de proibido. E outro, e outro, até que deu cabo do maço que possuía. Aquilo lhe causou tamanha indignação que exigia atitude: comprou outro maço, porém de marca mais forte e embarcou, perpetuando o círculo do vazio que fazia todos os dias, e que hoje sabemos, nunca mais se alterou. Continuou quase o mesmo, mas de que importa. Nada novo se deu, apenas embarcou, levando consigo para outro lugar os seus tormentos com os quais andará. Não conseguirá jamais esquecer tão pedante fardo: a dor, de ter perdido um grande amor.

Ouro Preto, abril de 2008.

Aristides Araújo.

* dedico este conto aos meus caros amigos editores deste blog e a Camila Maria por me fazer tão feliz.

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